“Sendo chegado à Minha Real Presença uma muito atendível representação sobre os danos a que está exposta a saúde pública, por se enterrarem os cadáveres nas igrejas que ficam dentro das cidades populosas dos Meus Domínios Ultramarinos, visto que os vapores que de si exalam os mesmos cadáveres, impregnando a atmosfera, vêm a ser a causa de que os vivos respirem um ar corrupto e infeccionado, e que por isso estejam sujeitos […] a moléstias epidêmicas e perigosas.”
Em janeiro de 1801, o príncipe-regente de Portugal, Dom João VI, encaminhou uma carta régia ao vice-rei e capitão-general do Estado do Brasil, Dom Fernando. Com a justificativa de estar preocupado com a “preservação da vida de Meus fiéis vassalos”, ele proibiu “que dentro dos templos se continue a dar sepultura aos cadáveres logo que estiverem construídos os mencionados cemitérios”.
Na Europa, o discurso higienista se propagava desde a década de 1740. Já no Brasil, a população resistiu à criação dos chamados cemitérios extramuros.
Fundado em dezembro de 1854, o Cemitério Municipal São Francisco de Paula, no bairro São Francisco, completa 170 anos. Ele é o cemitério público mais antigo de Curitiba e um dos mais antigos do país na modalidade de sepultamento extramuros, ou seja, fora das igrejas. A sua construção, entretanto, começou a ser discutida pela Câmara Municipal de Curitiba (CMC) em 1829. Visando à salvação da alma, o costume era sepultar os mortos em solo sagrado, dentro dos templos religiosos e no terreno ao redor deles.
A Europa já discutia, desde a década de 1740, o distanciamento entre mortos e vivos, com foco na saúde da população. Acreditava-se que os gases e líquidos gerados no processo de decomposição fossem os responsáveis por doenças e, consequentemente, epidemias. “Assim como as cidades cresciam, aumentava o número de sepultamentos e uma maior sensibilidade olfativa começou a despontar”, pontua a pesquisadora cemiterial Clarissa Grassi no livro “Memento Mortuorum – Inventário do Cemitério Municipal São Francisco de Paula”.
Apesar da carta régia de Dom João VI ordenar o fim dos sepultamentos nas igrejas, em 1801, houve um hiato para que as províncias brasileiras seguissem a ordem real e adotassem, efetivamente, os cemitérios extramuros. Já no Brasil Império, novas resoluções tentaram acabar com os sepultamentos dentro das igrejas, que eram feitos tanto no piso quanto nas paredes dos templos, do terreno ao redor deles.
Primeiro regimento das câmaras municipais das vilas e cidades do país, a lei de 1º de outubro de 1828, editada por Dom Pedro I, regulava as atribuições dos vereadores. O título 3, referente às “posturas policiais”, atribuiu aos vereadores a função de criar posturas sobre “o estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos”. O mesmo artigo delegou a eles o papel de estabelecer posturas para regular outras questões pertinentes à saúde, como o esgotamento de “pântanos e águas infectas” e o asseio dos matadouros de animais.
Os cemitérios públicos extramuros são criados a partir da década de 1830. O precursor foi batizado, em Salvador, com o nome de Campo Santo. A resistência ao sepultamento fora das igrejas, solo considerado sagrado, deu origem à revolta popular conhecida como Cemiterada, em 1836. O Cemitério Campo Santo foi depredado pela população.
Em Curitiba, os sepultamentos eram feitos nas igrejas da Matriz, do Rosário e da Ordem Terceira de São Francisco de Chagas, além da capela São Francisco de Paula (onde estão, hoje, as Ruínas de São Francisco, na praça João Cândido).. As paróquias das freguesias de Curitiba, hoje cidades da Região Metropolitana, também recebiam sepultamentos. “Tanto nas freguesias quanto nas capelas existiam estruturas para receber sepultamentos, em sua maioria na modalidade de cemitérios”, explica a pesquisadora Clarissa Grassi, que é diretora do Departamento de Serviços Especiais da Prefeitura Municipal.
A Câmara de Curitiba começou a discutir a construção do cemitério público em 1829. Na sessão de 12 de setembro de 1829, durante o debate das posturas da vila, o tema foi levantado pelo vereador Miguel Marques dos Santos, conforme a jornalista Michelle Stival, da Diretoria de Comunicação da CMC, já relatou na reportagem “A vida e a morte na história de Curitiba”, em 2010.
Marques chamou a atenção para a necessidade de se erigir um “cemitério nesta vila, a fim de não se enterrarem corpos nos templos da mesma, para se evitarem os males que disto resultam”. Os legisladores decidiram que a comissão que havia sido criada para estabelecer as posturas municipais emitiria um parecer sobre a questão.
Além de atender à lei de 1828, o debate sobre a construção do cemitério público extramuros chegou à Câmara de Curitiba em meio a uma epidemia de varíola, doença à época chamada de “bexiga”. Há registros, desde 1818, que os “bexiguentos” deveriam ser sepultados no cemitério Sítio do Mato, e não nas igrejas. Em 1838, os camaristas chegaram a mediar um entrave entre o professor de primeiras letras e o vigário da vila, por “ter se dado, no átrio de S. Francisco de Paula, sepultura a dois cadáveres que morreram de bexigas”. Denunciando os sepultamentos das supostas vítimas da varíola na igreja, que também recebia as aulas, o professor informou à Câmara ter suspenso as atividades por três dias. Ele também pediu que as aulas fossem transferidas para a Igreja Matriz.
(Fonte: Câmara Municipal de Curitiba/texto: Fernanda Foggiato)