“Corrientes tres cuatro ocho/segundo piso ascensor/no hay porteros ni vecinos/adentro cocktail y amor” (…). São os primeiros versos da canção ‘A media luz’, consagrada na voz de Carlos Gardel, música de Edgardo Donato e letra de Carlos Lenzi (ou Lenci), datada de 1924.
Não poucos já ouviram falar até hoje do endereço de Buenos Aires, Corrientes, 348, que era o de um sobrado sem graça, meio encardido, uma casa noturna, onde Gardel cantava quase todas as noites. Conheci o lugar, apenas por fora, há exatos 40 anos.
Na fachada do prédio, um registro para a história, materializado numa placa de bronze, mandada colocar pela Associación Propulsores Avenida Corrientes, em novembro de 1971: “Aqui en Corrientes, 348, se inspiro el tango ‘A media luz’, de Edgardo Donato y Juan Carlos Lenci: sus versos y su musica han dado passaporte internacional al tango argentino’.
Anos depois, o sobrado deu lugar a um edifício chamado Lipsia, que, entre outras coisas, passou a abrigar uma agência do Deutsche Bank, o Banco da Alemanha. E a plaquinha foi recolocada, chumbada ao lado da porta da garagem. Em, 1997, a garagem foi fechada com uma parede revestida de lajotas brancas, tendo uma porta encimada pela palavra ‘Corrientes’ sobre fundo azul; embaixo, o 348 em fundo amarelo.
Em 2004, constatei outra mudança: uma nova pintura, vermelha, com arabescos e o Corrientes 348 no centro, em destaque, encimando o acesso a um estacionamento. Mas a plaquinha comemorativa havia sumido. Nova visita, há um ano: quase tudo igual, só a pintura vermelha parecia um tanto desbotada. Logo ao lado, uma luminária sobre uma sinalização luminosa em forma de semáforo separa os números 348 e 350 (que não era mostrado anteriormente).
De qualquer maneira, apesar de relegado a um segundo plano, o lugar ainda é um marco histórico da capital argentina. Talvez parte desse esquecimento seja porque, naqueles seus primeiros trechos, a Corrientes não é lá muito interessante, com seus edifícios recheados de escritórios e de instituições financeiras. O agito começa mais adiante, principalmente depois da ampla avenida 9 de Julio – em cujo cruzamento está o Obelisco -, o que já lhe valeu o título de “Broadway Portenha”.
É uma sucessão de livrarias, cafés, teatros, cinemas, pizzarias, uma espécie de eixo da vida boêmia de Buenos Aires, onde a noite parece nunca acabar.
A Corrientes – assim chamada a partir de 1822 em homenagem à província argentina que teve papel decisivo na Revolução de Maio de 1810, marco inicial da independência do país – tem cerca de 8,6 quilômetros de extensão e 70 quadras. Começa em Puerto Madero, perto do Luna Park e do Centro Cultural Kirschner, com o primeiro trecho situado entre as avenidas Alicia Moreau de Justo e Eduardo Madero, e vai até o bairro da Chacarita, onde está o cemitério onde repousam os restos mortais de Gardel.
Alargada entre 1910 e 1938, a Corrientes atravessa bairros importantes, como Abasto (onde morou Gardel), Almagro e Villa Crespo, mas nem sempre é uma linha reta. Ao atingir a avenida Frederico Lacroze, uma das principais da Chacarita, bifurca-se com a avenida Forrest, segue à esquerda e pouco adiante muda de nome: passa a ser a avenida Guzmán.
Só a Corrientes já vale uma visita a Buenos Aires.
O tango ‘A media luz’
Corrientes tres cuatro ocho,
segundo piso ascensor,
no hay porteros ni vecinos,
adentro cocktail y amor.
Pisito que puso Mapple,
piano, estera y velador,
un telefón que contesta,
una vitrola que llora,
viejos tangos de mi flor,
y un gato de porcelana
pa´que no maúlle el amor.
Y todo a media luz…
que es un brujo el amor,
a media luz los besos,
a media luz los dos.
Y todo a media luz,
crepusculo interior,
Que suave terciopelo
la media luz de amor.
Juncal doce veinticuatro
telefoneá sin temor,
de tarde, té con masitas,
de noche tango y champán.
Los domingos, té danzante,
los lunes desolación.
Hay de todo en la casita:
almohadones y divanes
como en botica, cocó,
alfombras que no hacen ruido
y mesa puesta al amor..