
Segunda-feira, 24 de setembro de 1979. Teatro do Paiol, Curitiba. Plateia lotada. A atriz Regina Duarte chega à arena seguida pelo publicitário Roberto Duailibi, um dos sócios da emblemática agência de publicidade DPZ, de São Paulo.
No domingo, matéria da Gazeta do Povo anunciava: “Malu Mulher nesta segunda no Paiol”. Malu era a personagem central de um seriado da Rede Globo, criado e dirigido por Daniel Filho, que fazia grande sucesso no país e contava as dificuldades de uma recém-divorciada em tempos de preconceito.
Regina e Duailibi eram os protagonistas de mais um capítulo do projeto Parcerias Impossíveis, iniciativa da Fundação Cultural de Curitiba, na segunda gestão do prefeito Jaime Lerner (1979-1983), que reunia, sempre às segundas-feiras, duas vezes por mês, duplas de profissionais de atividades diferentes. Cada um falando de sua vida, de suas atividades, de política, cultura, de sua visão de mundo. E interagindo com a plateia.

Regina Duarte, meio espantada, olha o público, vacila e senta-se em frente a Duailibi. E fica calada. A conversa não flui. O “parceiro”, publicitário experiente e premiado, provoca o diálogo. E nada. A Parceria Impossível daquela noite foi praticamente um monólogo. Quase um desastre. Fui testemunha.
Em sua coluna Tablóide, do jornal O Estado do Paraná, o jornalista Aramis Millarch (1943-1992) qualificaria o encontro de “uma parceria pouco feliz”: “… Regina, tímida, sem energia, respondia quase tudo por monossílabos”.
A atriz passou à plateia a imagem de que só sabia se expressar com base em script, que decorava, como fazia, e com competência, nas novelas de televisão. A “namoradinha do Brasil”, como era chamada, congelou diante do público.
Resta saber se, agora, na qualidade de secretária nacional da Cultura, também precisará de um bom script para desempenhar a importante tarefa num governo que vê a Cultura com má vontade e até desprezo.
Regina vai precisar de bons roteiristas. E decorar bem o seu papel.
TEATRO DO PAIOL

Marco da transformação cultural de Curitiba há quase 50 anos – que serão comemorados em 2021 -, primeiro teatro de arena do Paraná, obra do prefeito Jaime Lerner em sua primeira das três gestões à frente do Executivo municipal (1971-1975), o Teatro do Paiol (r. Coronel Zacarias/praça Guido Viaro, no bairro Rebouças) abriu suas portas ao público em 27 de dezembro de 1971.
De formato circular, estilo romano, o prédio havia sido construído em 1905/1906 para abrigar produtos inflamáveis e explosivos (que eram utilizados nas pedreiras municipais), substituindo um antigo depósito, que havia explodido.

Em 1968, um grupo de pessoas ligadas ao teatro sugeriu à Prefeitura a transformação do local em um teatro. Jaime Lerner, que presidia o Ippuc (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba) recebeu o pedido e gostou da ideia. Mas esbarrou na implicância do diretor do Departamento de Obras (departamento era a designação das atuais secretarias), contrário à ideia, que fez a cabeça do prefeito Omar Sabbag.
Nomeado prefeito em 1971 e empossado em março, Lerner desengavetou o pedido e encarregou o arquiteto Abrão Assad do projeto de revitalização do prédio histórico. Em nove meses a obra estava concluída. Um teatro de arena com 220 lugares.
Pensou-se, inicialmente, em batizar o novo teatro com o nome de Sérgio Porto (em homenagem ao jornalista e teatrólogo Sérgio Marcus Rangel Porto (1923-1968), o famoso Stanislaw Ponte Preta, autor de obras como o Febeapa – Festival de Besteiras que Assola o País, coletânea de crônicas que poderia ser tranquilamente aplicada aos dias de hoje).
Mas ficou mesmo Teatro do Paiol. Simples e referência a um marco da história local.

A inauguração do Paiol, em 27 de dezembro de 1971, foi um acontecimento memorável: a plateia, lotadíssima, aplaudiu o show de Vinicius de Moraes, Toquinho, Marília Medaglia e o Trio Mocotó. (Uma ousadia escolher data espremida entre o Natal e o Ano Novo, mas deu tudo certo)
Vinicius “benzeu” o teatro aspergindo uísque de seu copo. E até fez música especial para a data – “Paiol de Pólvora”, em cuja letra muitos viram alusão aos tempos ditatoriais dos governos militares: “Estamos trancados no paiol de pólvora/Paralisados no paiol de pólvora/Olhos vedados no paiol de pólvora/Dentes cerrados no paiol de pólvora…” – que acabou tema da novela “O Bem Amado”, de Dias Gomes, da Globo, a primeira em cores da televisão brasileira.
A inauguração oficial do Paiol ocorreu três meses depois, em 29 de março de 1972. Naquele dia, Curitiba comemorava 279 anos de sua elevação à categoria de Vila, evento que remete à instalação da Câmara de Vereadores.
PARCERIAS IMPOSSÍVEIS
O projeto Parcerias Impossíveis nasceu em 1979, por sugestão do então diretor executivo da Fundação Cultural de Curitiba, Ernani Buchmann, atual presidente da Academia Paranaense de Letras. O presidente da Fundação era o publicitário Sérgio Mercer (1943-1996). O Teatro do Paiol tinha como coordenadora a jornalista Antonia Eliana Chagas, a Tonica. Lúcia Camargo, assessora da FCC, foi encarregada de gerenciar o projeto. (Leia texto abaixo, assinado por Buchmann.)
A ideia era reunir, em noites das segundas-feiras, quinzenalmente, nomes importantes de atividades opostas. Ou quase opostas.

O projeto foi inaugurado dia 10 de julho de 1979: na arena do Paiol, João Saldanha, jornalista e ex-técnico da seleção brasileira de futebol, e Paulinho Nogueira, compositor.
No ano de estreia, foram 13 edições. Duas delas com dois futuros presidentes do Brasil. Em 20 de agosto, “o brilhante scholar paulistano, sociólogo, Fernando Henrique Cardoso”, como citou um colunista, fez dupla com o cartunista Zélio Alves Pinto, irmão de Ziraldo.
Em 3 de setembro, foi a vez de Luiz Inácio da Silva, cujo apelido Lula ainda não havia sido oficialmente incorporado ao nome. Ele dividiu a arena do Paiol com o músico e compositor Maurício Tapajós.
O ano fechou com Fernando Gabeira, jornalista, ex-exilado, e Ademilde Fonseca, considerada “a melhor intérprete do chorinho no Brasil”. Ainda em dezembro, sentaram diante da plateia do Paiol o poeta Thiago de Mello e Grande Otelo (Sebastião Bernardes de Souza Prata), ator de chanchadas (comédias musicais brasileiras) e protagonista do filme “Macunaíma”.

Em 1980, foram 20 edições. Algumas delas: o costureiro Clodovil Hernandes e a atriz e cantora Zezé Motta; o cacique xavante Mário Juruna e o cineasta Zelito Viana; o árbitro de futebol Armando Marques e o compositor Toquinho; Lúcio Alves, cantor, e José Celso Martinez Correa, diretor de teatro; a atriz Odete Lara e o antropólogo e escritor Darcy Ribeiro.
E pela primeira vez, dois casais de cada lado: Bruna Lombardi e Carlos Alberto Ricelli, atores, versus Kate Lyra, atriz e cantora, e Carlinhos Lyra, compositor e parceiro de Vinicius de Moraes.
1981 foi marcado por 15 parcerias, entre elas: Roberto D’Ávila, jornalista, e João do Valle, músico; Hector Babenco, cineasta, e Norton Morozowski, pianista; o compositor Zé Keti e o cartunista Jaguar, um dos fundadores de O Pasquim; Billy Branco, compositor, e Paulo Mendes Campos, escritor; o maestro clássico Roberto de Regina e a cantora Ângela Ro Ro (Ângela Maria Diniz Gonçalves).
Onze edições fecharam a série em 1982, com destaque para as do sertanista Orlando Villas Boas com a atriz e empresária Ruth Escobar; o escritor Ignácio de Loyola Brandão e o chargista Chico Caruso; a atriz Lucinha Lins e o escritor e roteirista de novelas Doc Comparato; Aparício Basílio da Silva, perfumista e proprietário da Rastro, indústria de perfumes, e Kate Hansen, atriz de novelas e de cinema; o ator e cineasta Anselmo Duarte, premiado em Cannes com a Palma de Ouro, por seu filme O Pagador de Promessas, e o compositor Elton Medeiros, parceiro de Cartola (Angenor de Oliveira) e da Paulinho da Viola.
Foi um tempo de muito brilho na cultura curitibana. (JZ)
Parcerias Impossíveis, breve memória
Ernani Buchmann*
Curitiba, meados de 1979, segunda gestão de Jaime Lerner na prefeitura de Curitiba. Ele vivia dizendo que havia nomeado o Sérgio Mercer para a presidência da Fundação Cultural, comigo na direção executiva, porque esperava que a gente tivesse ideias. Um domingo liguei para ele no fim da tarde:
– Jaime, tenho uma ideia.
– Venha aqui em casa.
– Quando?
– Agorrinha mésmo, naquele jeitão lerniano de imitar polaco.
Contei o que eu planejava e ele mandou tocar.
– Semana que vem vamos fazer a primeira edição.
Claro que não foi possível montar tudo em sete dias. O financeiro da Fundação era Constantino Viaro, um homem rigoroso com o dinheiro, mão fechada de carteirinha. Levamos 15 dias. Lúcia Camargo, então assessora da diretoria executiva da FCC, foi escolhida para gerenciar o projeto. A primeira questão foi definir o nome: quase ficamos com Parcerias Improváveis, mas a palavra “Impossíveis” tinha apelo maior. Levou.
Para decorar o palco, Lúcia e a direção do Paiol (Tonica Chagas) reproduziram o calçadão da Rua XV, com as luminárias e os sofás de madeira pintadas de verde.
Fizemos uma relação dos possíveis candidatos à estreia e fechamos com João Saldanha e Paulinho Nogueira. Os cachês não foram altos: o João veio de graça e o Paulinho cobrou um preço simbólico, menor que o cobrado em shows.
Ficaram hospedados no Hotel Guaíra, na Praça Ruy Barbosa. Alguém levou o compositor para o Paiol e passei pegar o Saldanha.
No caminho ele se revelou preocupado:
– Acho que esse negócio lá no teatro não vai funcionar.
Eu estava preparado para fazê-lo soltar a língua: mandei deixar uma garrafa de Old Eight, água e gelo no camarim. Antes de entrar em cena, Saldanha tomou meia garrafa daquela ampola.
Luiz Augusto Xavier fazia o locutor oculto, voz em off em cima de texto que eu havia redigido. A função era apresentar os participantes, fazer as primeiras perguntas e deixar que o público tomasse conta.
O teatro não lotou, ficamos com 2/3 da capacidade. Mas quem foi não se arrependeu.
Ali João Saldanha começou a montar a versão de que havia sido demitido pela seleção brasileira porque não aceitou interferência do general Medici.
Lembro bem quando ele soltou a frase que ficaria famosa:
– O general quis escalar a seleção. Respondi que ele escalava o ministério, quem escalava a seleção era eu.
(A verdade não é essa. Medici havia dito que queria ver Dario, do Atlético Mineiro, na seleção, apenas isso. Saldanha foi demitido tempos mais tarde, depois da seleção haver sofrido para empatar com o Bangu – graças a um pênalti inventado para diminuir o vexame. Naquela noite, na concentração, o então presidente da CBD, João Havelange, encontrou Saldanha esparramado, de porre na sala da concentração. Esperou o dia seguinte e mandou-o embora.)
Jaime Lerner adorou e fomos todos jantar no Restaurante do Guilhobel, na Avenida Nossa Senhora da Luz.
Duas semanas mais tarde, vieram Ziraldo e Sérgio Ricardo. O cartunista foi uma escolha direta do prefeito e, por sua vez, escolheu o parceiro. Eram amigos de longa data, portanto a parceria não era tão impossível assim. Ziraldo desenhou, contou mil histórias, fez todo mundo rir. Sérgio Ricardo contou pela milésima vez a sua “violada no auditório”. A casa ficou quase lotada.
A terceira atração foi Roberto Duaibili e Regina Duarte, cuja nos custou um dinheirão. O prefeito foi responsável pelo convite ao Duaibili, que circulou pela cidade comigo, na tarde do show, para conhecer a Curitiba do Jaime Lerner. Hoje sabemos que Regina Duarte passava apertos financeiros na época, mas foi um custo danado convencer Constantino Viaro a pagar o que ela queria.
Casa lotada, o evento amadurecia a cada edição. Foi a vez do cartunista Zélio, irmão do Ziraldo, trazer Fernando Henrique Cardoso, que havia acabado de disputar, e perder, eleição para o Senado em São Paulo. Casa cheia, novamente.
Então conseguimos trazer Lula, que faria o show com Maurício Tapajós. A assessoria do PT marcou um evento na Faculdade de Direito de Curitiba na mesma noite. Paiol lotado, tive que invadir a coxia do auditório da faculdade para convencer o pessoal do partido a liberar o Lula.
A essa altura sobrava gente no teatro, com a polícia militar barrando a entrada para evitar a superlotação. Lula entrou no palco com uma hora de atraso, sob aplausos, ao som de Estou Voltando, hino da época da anistia e maior sucesso da carreira de Maurício Tapajós.
O espetáculo terminou em plena madrugada. Então fomos jantar do Bar Palácio. Em uma mesa ao fundo, nosso já conhecido Fernando Henrique jantava com a turma do MDB. Não demorou e juntou-se a nós: Lula, Tapajós, Jaime, Gilberto Camargo, Adherbal Fortes e eu, além de outros circunstantes. Uma noite memorável.
A essa altura começaram as pressões para mudar o local para o Guaíra. Quando comentei isso com Jaime Lerner, ele vetou de plano:
– O Paiol é nosso, da prefeitura. O Guaíra não. Vamos perder a nossa autonomia.
Com o tempo – e o sucesso – o próprio prefeito pediu que os shows passassem a ser semanais. Assim vieram Henfil (com um líder sindical do ABC), Grande Otelo (com não sei quem) e muitos outros. Vale a pena relembrar a grande noite de Fernando Gabeira com Ademilde Fonseca.
Gabeira descalçou os tamancos, sentou em posição de lótus no sofá de madeira e ficou ouvindo Ademilde cantar naquele ritmo alucinante que ela dava às músicas (acho que era Tico Tico no Fubá). Então comentou, naquele tom rouco e pausado com que faz seu programa na Globo News:
– A vida é muito louca. Semana passada eu estava em São Tomé das Letras, fumando baseado e curtindo o cosmos. Agora estou aqui dividindo um palco com essa cantora. Que coisa mais retrô!
Fiquei na FCC até meados de 1980. As Parcerias sobreviveram até o fim de 1982 – quando terminou a gestão – sempre sob a gestão da Lúcia Camargo, que me substituiu na direção executiva da Fundação. Foi um dos projetos mais bem sucedidos da área cultural na história da cidade.
Em tempo: só tivemos uma ausência. Foi do jogador de futebol Paulo Cesar Caju. Há pouco mais de um ano estive com ele em um evento em Santa Felicidade. Comentei o cano que ele havia nos dado, mas lembrei que, na véspera do show, ele havia comandado outro show, o do Grêmio na conquista do Campeonato Gaúcho.
– Então foi por isso. Depois daquele jogo só voltei a lembrar das coisas na terça-feira.
Mas aí já era tarde, aquela edição da Parcerias precisou ser cancelada.
*Ernani Buchmann foi diretor executivo da FCC e é o atual presidente da Academia Paranaense de Letras