Abril de 1946: silenciam as roletas

Fachada do antigo Cassino Ahu/foto: Acervo da Casa da Memória/Diretoria do Patrimônio Cultural/FCC

Dona Carmela Leite Dutra, alcunhada dona Santinha na intimidade, fez um dia três pedidos ao marido, o marechal e presidente da República Eurico Gaspar Dutra, que então iniciava seu mandato de cinco anos, nos princípios de 1946: construir uma capela no Palácio Guanabara – residência oficial do presidente no Rio de Janeiro, a velha Capital Federal -, extinguir o Partido Comunista Brasileiro e fechar todos os cassinos e proibir os jogos de azar no Brasil.

Conseguiu as três coisas. A mais fácil foi fechar os cassinos.

Católica, exageradamente devota e ligada aos setores mais conservadores da Igreja, dos quais ouvia o pleito insistente de parar as roletas, a afável dona Santinha não se fiou apenas nas rezas, mas obteve a cumplicidade do ministro da Justiça, o mineiro Carlos Coimbra da Luz (mais tarde presidente-tampão-relâmpago em razão do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954), de olho comprido no eleitorado católico e ultraconservador de seu estado.

Numa calma manhã de outono, 30 de abril de 1946, três meses após a posse, o ministro Luz foi ao Palácio do Catete e ofereceu ao despacho do presidente o Decreto-Lei nº 9.215, encomendado por dona Carmela Santinha.

O tímido Dutra sacou sua caneta-tinteiro e autografou o papel. O artigo 1º do Decreto-Lei tinha redação cifrada, mas endereço certo: “Fica restaurada em todo o território nacional a vigência do artigo 50 e seus parágrafos da Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688, de 2/10/1941”. O artigo 2º revogava uma série de outros Decretos-Leis e o terceiro tornava nulas todas as licenças e concessões. Milhares de pessoas ficaram desempregadas da noite para o dia.

O PCB foi detonado algum tempo depois e a capela ergueu-se com as bênçãos do cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro.

Eurico Gaspar Dutra podia viver em paz no ambiente doméstico.

A CHÁCARA DO AHU

 Quem passa pela rua Brasilino Moura, na altura da rua Leônidas Vicente de Castro (hoje uma travessa particular), no bairro Ahu, em Curitiba, não imagina que aquele elegante casarão na esquina, à direita de quem sobe, e que ostenta placas do Provincialato das Irmãs da Divina Providência e do Colégio Bom Jesus Divina Providência, abrigou durante seis anos, na década de 1940, um famoso cassino.

Entrada do Colégio Divina Providência, no bairro Ahu/foto JZ

Quem visita as dependências do lugar mal pode visualizar que, naquele salão, com o palco ao fundo, apresentaram-se os maiores cantores e cantoras que o Brasil já conheceu, além de expoentes latino-americanos, e bailava-se ao som de grandes orquestras. E que, no salão ao lado, corriam soltos os jogos de roleta e bacará, com a ansiedade dos jogadores sendo monitorada pelos olhares atentos dos croupiers.

“Espaço iluminado, misto de prazer, sonhos e pecados”, nos anos 1930/1940, “os cassinos ofereciam, ao lado de sua feérica tentação das roletas, cartas em mesa de pano verde, as ilusões de fazer fortunas em poucos minutos, e também shows que não se viam em outras partes”, descreve o jornalista curitibano Aramis Millarch (1943-1992), na apresentação do livro “A Música no Cassino Ahu”, do engenheiro químico, professor e especialista em música popular Alceu Schwab. No Cassino Ahu não era diferente.

Tudo começou com a Chácara do Ahu, em meados do século XIX, obra do mestre ferreiro alemão Michael Müller, que veio com a família ao Brasil em 1828, fixando-se em Paranaguá e Antonina, antes de chegar a Curitiba. Bem mais tarde, o lugar passou a ser propriedade do empresário Flávio de Azevedo Macedo.

Como a chácara possuia fonte de água de excelente qualidade, embora não mineral como foi provado anos depois, mas graças ao jeitinho brasileiro, Macedo obteve do interventor Manoel Ribas, em 2 de dezembro de 1939, a concessão por 10 anos para explorar, “na estância hidromineral Aú” (sem h, corrigido depois) “cassinos, aposentos para hospedagem, restaurante, bar, piscina para banhos, salões para banquetes e recepções, conferências, festas beneficentes, jogos permitidos e outras diversões comuns a cassinos”.

De posse da concessão, publicada no Diário Oficial nº 2.205, daquele mesmo dia, Flávio Macedo arrendou o lugar para os srs. Acyr Guimarães, Domiciano Serrato e Paschoal Conzo.

O Cassino Ahu abriu as portas dia 25 de janeiro de 1940, conforme a publicação da Casa Romário Martins, da Fundação Cultural de Curitiba, “Memórias da Sorte e do Azar”, pesquisa de Rafael Greca de Macedo e da jornalista Maí do Nascimento Mendonça, com vários depoimentos de pessoas que viveram aquela época.

O professor Alceu Shwab conta em seu livro que o jornal Gazeta do Povo publicou durante vários dias o convite para a festa de inauguração: “Domiciano Serrato & Cia. Ltda., concessionários do Cassino Ahu, convidam a sociedade curitibana para assistir a inauguração deste luxuoso centro de diversões, a se realizar no dia 25, quinta-feira, às 15 horas. Não há convites especiais”.

Na data da festa, o anúncio da empresa tratava o lugar como “rigorosamente familiar” e anunciava “programas diários de arte, com artistas vindos dos cassinos do Rio e de São Paulo – desde as 20 horas, danças no “grill room”, com o jazz Manon. Restaurante a cargo de Caruso. Cinco minutos da praça Tiradentes. Serviço especial de ônibus”.

A própria Gazeta, em reportagem, tratou a festa como “acontecimento social do ano” e qualificou o cassino de “elegantíssimo ponto obrigatório de nossa alta sociedade e daqueles que nos visitam”. Foi um desfilar de chapéus e joias em profusão.

TEMPO DE GRANDES SHOWS

O Cassino Ahu funcionou durante seis anos. Morreu no último dia de abril de 1946, como todos seus congêneres brasileiros. Antes do decreto do marechal Dutra, porém, houve outra época de proibição do jogo no Brasil – entre 1926 e 1930, no mandato do presidente Washington Luís. No Paraná, o interventor Manoel Ribas fechou o jogo em 1937, mas dois anos depois voltou atrás e concedeu o alvará a Flávio Macedo.

O curioso é que na primeira campanha eleitoral depois da redemocratização do país, em 1945, quem prometia fechar os cassinos era o adversário de Dutra, o brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN. O marechal, que se elegeu pela coligação PTB-PSD, nunca tocou no assunto, mas se curvou às ordens de dona Santinha.


Piscina do Cassino Ahu, à sombra dos pinheiros/ foto: Acervo da Casa da Memória/Diretoria do Patrimônio Cultural/FCC

O Cassino Ahu tinha quatro mesas de roleta com dois panos (ficha mínima, 1 mil réis, máxima, 100 mil) e uma para bacará ou chemin-de-fer (mínima de 5 mil réis e máxima de 500 mil), onde cabiam 18 pessoas. Como em todos os cassinos, eram proibidas fotos internas, talvez para não constranger os jogadores.

Enquanto o jogo fascinava os apostadores, o salão ao lado era cenário dos grandes shows. Uma hora de jazzband, com os clássicos de Benny Goodman e Glenn Müller, cujas partituras vinham dos EUA, uma de música latina, com muito tango, ao som de dois violinos, bandoneón, piano e baixo, e chorinhos de Pixinguinha.

Ali se apresentaram cantores famosos, como Gregório Barrios, Linda Batista, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Araci de Almeida, Dalva de Oliveira, Carlos Galhardo, Francisco Alves, Francisco Canaro, Dolores Duran, Jorge Veiga, Isaurinha Garcia, Ataulfo Alves e orquestras como a de Xavier Cugat. Parece que só faltou Carmem Miranda, que vivia nos Estados Unidos.

Em seu “A Música no Cassino Ahu’, o professor Schwab cita, entre as atrações da casa, o cantor Moraes Netto, considerado o intérprete preferido do compositor Ary Barrozo. Feliciano Constantino de Moraes Netto, mineiro de Machado, viveu longo tempo em Curitiba e aqui faleceu em 2009, aos 91 anos. Outros destaques relatados no livro eram “os bailados de Carlos Lisboa, a orquestra Manon (12 músicos, dois crooners e duas lady cronners) e a correta direção de Aluízio Finzetto”. Finzetto foi um dos expoentes do rádio e pioneiro da televisão no Paraná.

Em sua pesquisa para o livro, Alceu Schwab procurou pelo significado da palavra “Ahu”, que, segundo o professor e linguista paranaense Rosário Farani Mansur Guérios significa “falso ou ilusório”. A mesma resposta obteve tempos depois, ao consultar um dicionário tupi-guarani-português.

WALT DISNEY, CERTA NOITE

Walt Disney: o pai de Mickey esteve uma noite no cassino curitibano/foto: Disney/Wikipedia

Quem apareceu uma noite no Cassino Ahu, em 1941, dia e mês não revelados, foi o famoso Walt Disney (Walter Elias Disney), como conta o jornalista Aramis Millarch em sua coluna Tablóide (O Estado do Paraná, 13.6.1990), com base do livro de memórias do radialista paulista radicado em Curitiba Paulo de Avelar, publicado em 1989.

Disney viajava dos EUA a Buenos Aires, quando uma pane obrigou o avião a pousar no aeroporto do Bacacheri (o Afonso Pena ainda não existia). Hospedou-se no Grande Hotel Moderno, em companhia da atriz e soprano Grace Moore, e à noite foi com ela tentar a sorte na roleta. Curitiba era, então, uma cidade de 150 mil habitantes.

Em 1943, em razão de obras de ampliação, o Cassino foi transferido provisoriamente para um pavilhão na praça Ruy Barbosa, ao lado do Cone Island Park. Ficou ali um ano, enquanto o arquiteto Bruno Sercelli coordenava as obras executadas pela empresa Irmãos Thá & Cia.

Os salões foram festivamente reabertos em 14 de setembro de 1944. Na imprensa, um comunicado da direção: “De acordo com a lei, a frequência ao cassino só será permitida a pessoas de instrução da sociedade e reconhecida idoneidade econômica. Será desagradável e inútil qualquer insistência em contrário”.

Menos de 20 meses depois, as roletas silenciaram: 95 pessoas perderam o emprego, afora os agregados e prestadores de serviços, o que resultou na maior questão trabalhista registrada no Paraná, à época, segundo o advogado João Kracik Neto, que representava o Sindicato dos Empregados em Comércio Hoteleiro e Similar (mais tarde presidiu a Federação do Comércio Varejista).

Em 1957, a propriedade foi comprada pela Província das Irmãs da Divina Providência, para uma unidade do tradicional colégio curitibano. Em 2005, uma parceria com a Associação Franciscana de Ensino Bom Jesus transformou-o no Colégio Bom Jesus Divina Providência.

CENÁRIOS DO JOGO

O Ahu não foi o único cassino de Curitiba. Foi o maior e o mais famoso. Do final do século XIX até meados da década de 1920, havia o Cassino Curitibano, vizinho do clube do mesmo nome, na rua 15 de Novembro, entre ruas 1º de Março (atual Monsenhor Celso) e da Liberdade (atual Barão do Rio Branco). Pegou fogo em 1912 e mudou para vários outros locais, até desaparecer em 1937.

Segundo a pesquisa “Memórias da Sorte e do Azar”, já citada, havia também os cassinos do Jockey Club, da Associação de Imprensa (presidida por Acyr Guimarães, depois co-proprietário do Cassino Ahu), dos clubes Britânia, Português e Atlético e nos cabarés Elite, na praça Zacharias, e República, na rua Voluntários da Pátria. No edifício Garcêz, funcionou no período 1936-1937, o Estância das Mercês, assim chamado porque seus donos exploravam uma estância de água mineral no bairro Mercês.

Cassino Quitandinha, em Petrópolis/foto: Wikipedia

Entre os cassinos brasileiros mais famosos estavam os das cidades do Rio de Janeiro – Atlântico e do Copacabana Palace, na avenida Atlântica, e o da Urca, na rua João Luiz Alves, no bairro do mesmo nome.

O Copa, mais antigo, foi fundado em 1923, cerrou suas portas no governo Washington Luís, mas as reabriu, com todos esplendor, em 1932, na era Getúlio Vargas. Foi o primeiro lugar público a tirar de casa os grã-finos cariocas, que só se divertiam em palácios fechados ou na Europa, como conta o jornalista e escritor Ruy Castro, em seu livro “Carmen Miranda”.

Em Petrópolis, no Rio de Janeiro, as roletas giravam no Quitandinha e no Icarahy. Em Belo Horizonte, no Cassino da Pampulha.

DE TENÓRIO A KNOP

Há vários projetos hibernando no Congresso Nacional propondo a reabertura do jogo no Brasil. Um deles é do ex-deputado catarinense Dércio Knop, apresentado em 1992, talvez o mais conhecido e debatido. Em 1952, um ano depois da volta de Getúlio Vargas ao poder, pelo voto direto, sucedendo ao marido de dona Santinha, o excêntrico deputado fluminense Tenório Cavalcanti – o famoso homem da capa preta e da metralhadora – apresentou projeto nesse sentido. Vários outros projetos foram recusados.

No Senado Federal o projeto de Lei 186/2014, do senador Ciro Nogueira, que autoriza a exploração de ‘jogos de fortuna’, on line ou presenciais, estaria pronto para ser analisado em plenário.

Segundo a Agência Senado, um substitutivo à proposta contempla o jogo do bicho, vídeo-bingo e videojogo, bingos, cassinos em complexos integrados de lazer, apostas esportivas e não esportivas e cassinos on-line. Se aprovado, o credenciamento para exploração do jogo de bingo e vídeo-bingo teria prazo de 20 anos, renovável por igual período, e seria de responsabilidade dos estados. Já o dos cassinos teria validade de 30 anos, podendo ser renovado por sucessivos períodos.

O jogo continua proibido no Brasil, mas isso não impede o funcionamento, muitas vezes na barba das autoridades, de cassinos e bingos clandestinos, cujo conhecimento só chega ao grande público quando algo de anormal acontece. Isso sem contar as dezenas de loterias-caça níqueis patrocinadas pelo governo federal.

 

 

 

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