O quarto está até hoje como o poeta o deixou em sua última noite no hotel: cama desarrumada e, sobre ela, cobertores, dois travesseiros, um livro, papéis e uma caneta Bic fechada. Nas mesinhas de cabeceira, um porta-retrato, mais papéis e alguns objetos, entre eles o que parece uma imagem de são Jorge.
Diante da cama, duas mesas: uma de trabalho, com cadeira, livros, listas telefônicas, óculos, despertador, luminária, mais papéis, uma garrafa de água mineral e um cinzeiro cheio de bitucas; na outra, uma garrafa térmica, um copo de café pela metade, outro cinzeiro, livros, uma carteira de cigarros e um doce num pratinho.
Ao lado esquerdo da cama, outra mesa, com máquina de escrever, cadeira, livros e vários objetos; segue-se uma bancada com um televisor diante de um espelho, outra luminária, objetos diversos e esculturas.
Nas paredes, quadros, um pôster de Carlitos (do filme “O Garoto”, que inspirou o seu primeiro poema, publicado em 1926), uma estante com livros. O cenário é ainda composto de uma cadeira branca, de braços, e uma poltrona bordô, onde repousa um cobertor azul escuro. No chão, um aquecedor e vários jornais.
Esse era o mundo onde viveu, por 14 anos, entre 1968 e 1982, o poeta gaúcho Mário Quintana, nascido em Alegrete, em 1906; morreu em 5/5/1994, aos 88 anos, solteiro: o quarto 217 do hotel Majestic, endereço famoso do centro de Porto Alegre (RS), prédio hoje transformado na Casa de Cultura Mário Quintana. Pode apenas ser admirado através de uma janela de vidro.
POUSO DE CELEBRIDADES
Construído entre 1916 e 1933, o hotel Majestic viveu tempos de esplendor nas décadas de 1930, 1940 e 1950. Ali se hospedaram políticos como Getúlio Vargas e João Goulart e nomes de expressão do meio artístico-cultural. Foi tombado pelo Patrimônio Histórico em 1990.
O Majestic foi obra ousada de um empresário de importação e exportação de açúcar, Horácio Carvalho, que entregou o projeto e a obra ao arquiteto alemão radicado no Brasil Theodor Alexander Josef Wiedersphan. Foi o primeiro edifício de Porto Alegre onde se utilizou concreto armado. E também o primeiro da capital gaúcha a ocupar os dois lados de uma rua, a travessa Araújo Ribeiro, unidos por passarelas com arcadas e sacadas. Era considerado um hotel de luxo.
O prédio, hoje pertencente ao governo do Rio Grande do Sul, faz frente para a rua dos Andradas, nº 736 (endereço oficial), também conhecida como rua da Praia; na outra extremidade, está a rua Sete de Setembro.
Na Casa de Cultura há espaços dedicados aos acervos de Mário Quintana, naturalmente, e da cantora Elias Regina, ela também uma gaúcha, de Porto Alegre; as galerias Xico Stockinger, Sotero Cosme e Augusto Meyer, teatros Bruno Kiefer e Carlos Carvalho; as bibliotecas Érico Verissimo, Armando Albuquerque e Lucília Minssen; os espaços João Fahrion, Romeu Grimaldi, Maurício Rosemblatt, Fernando Corona e Vasco Prado; as salas Paulo Amorim, Radamés Gnatalli, Norberto Lubisco e Eduardo Hirtz; o auditório Luís Cosme; a discoteca Natho Henn; salas de cinema, café e livraria, além de parte do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. No quinto andar, está o jardim José Lutzenberger.
Quintana teria sido despejado do Majestic pela impossibilidade de pagar a hospedagem porque não recebia o salário do jornal Correio do Povo, que passava por dificuldades financeiras. Foi então morar no hotel Royal, num quarto pertencente ao ex-jogador do Internacional e da seleção brasileira Paulo Roberto Falcão.
Tempos atrás, fui conhecer a Casa de Cultura Mário Quintana. É reconhecidamente um ponto importante da cultura e do turismo de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Um memorial a nomes de expressão de sua história. Mas achei-a um pouco decadente, merecendo maior atenção e capricho por parte dos administradores. Quem sabe, quando a situação financeira daquele estado melhorar, depois de tantos desmandos, sobre um dinheirinho para pôr as coisas em ordem.
O patrono da Casa de Cultura, grande nome da literatura brasileira, que lamentavelmente não pertenceu à Academia Brasileira de Letras porque perdeu três eleições (os concorrentes eram ligados aos poderosos de plantão), e tantos outros nomes que lá estão imortalizados merecem muito esse resgate de dignidade.
JORNALISTA, POETA E TRADUTOR
O primeiro livro desse gaúcho de Alegrete foi A rua dos cataventos, publicado em 1940, desfiando um rol onde estão títulos como Sapato florido, Esconderijos do tempo, Apontamentos de história sobrenatural, A volta da esquina, Caderno H, Aprendiz de feiticeiro, Espelho mágico, O batalhão das letras, Quintanares e tantos mais, além dos dedicados às crianças.
Foi redator e colaborador de jornais como O Estado do Rio Grande, Diário de Notícias e Correio do Povo e da Revista do Globo e tradutor de Proust, Voltaire, Virginia Wolf e Gui de Maupassant.
Quintana esteve em Curitiba em março de 1983 e visitou a Casa Romário Martins, no Centro Histórico, onde foi recebido pelo então prefeito Jaime Lerner e pelo diretor da instituição, Rafael Valdomiro Greca de Macedo. Na ocasião, ganhei seu autógrafo na segunda edição da Nova Antologia Poética de Mário Quintana.
Outro grande poeta brasileiro, Manuel Bandeira, certa vez dedicou um poema a Mário Quintana, que a Editora Globo reproduziu na orelha do livro “Poesias”, de 1972. Começa assim: “Meu Quintana, os teus cantares/Não são, Quintana, cantares/ São Quintana, quintanares/Quinta-essência de cantares/Insólitos, singulares/Cantares? Não! Quintanares!” E termina: “Por isso peço não pares/Quintana, nos teus cantares…/Perdão! Digo quintanares”.
O escritor gaúcho Juarez Fonseca publicou em 2006, pela LP&M, o livro “Ora bolas – o humor de Mário Quintana”, com muitas histórias divertidas sobre o poeta.
E é de Quintana este pequeno poema: “Meu Deus/se a gente pudesse puxar/pela perna/um grilo/se desfiariam todas as estrelas!”